Mulheres de Terra e de Ferro.

Silmara estava mais branca do que de costume e franzia um pouco a testa. Elisângela, sua prima, olhava preocupada do lado. Sentada no banco de supino, com os braços apoiados na barra, Silmara esperava instruções. Gilson olhou, olhou, apertou o antebraço da menina e concluiu: “melhor não treinar hoje. Vá para casa”. Sem dizer muita coisa, Silmara se levantou e caminhou de cabeça baixa pela sala cheia de aparelhos, pegou a bolsa e partiu, acompanhada pela prima. Olhei para Gilson, que acompanhou as meninas com o olhar. “É... não sei.... algumas delas não passam bem mesmo”.
Silmara, de 17 anos e Elisângela, de 22, são atletas da GCA, uma academia localizada na Favela de Paraisópolis, em São Paulo. Elas são duas das aproximadamente 15 mulheres, em sua maioria jovens, que compõe a equipe de powerlifting que Gilson Clemente dirige. São todas moradoras de Paradise City, como eu chamo o lugar para onde vou todos os dias, exceto aos domingos, desde julho do ano passado. Eu sou a única mulher “estrangeira” do grupo – a única que não mora lá, que não é migrante nordestina de primeira ou segunda geração, a única que não administra desde que nasceu as contradições de se viver em Paradise. No começo elas estranharam mas em pouco tempo esqueceram minha condição de estrangeira. Nos vemos todos os dias, treinamos juntas, comemos juntas, viajamos juntas, dormimos juntas e fazemos as coisas comuns que todas as mulheres fazem: usar a roupa uma da outra, falar de homem e encontrar absorvente para uma emergência.
De vez em quando esqueço de que não sou nativa de Paradise. Esqueço da combinação de choque e encantamento das minhas primeiras idas à GCA. Esqueço de como foi fazer aquela curva na Giovanni Gronchi, que corta os bairros de mais alto poder aquisitivo em São Paulo, e em três quarteirões desembocar em Paradise, numa espécie de montanha-russa de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Os edifícios de um apartamento por andar e preço exorbitante dão lugar a um mundo de tijolos vermelhos e gente furiosamente construindo o tempo todo algo na laje superior. Esqueço do que foi entrar na sala de treino da GCA e me achar numa exposição de arte contemporânea, de apreciar as anilhas coloridas, as barras olímpicas, a gaiola azul de ferro onde se pendurava uma barra com dois pneus de caminhão fixados em cada ponta, como num móbile de Calder, e o Ikebana metálico de barras menores.
Hoje chego, e faço como todo mundo, em gestos automáticos. Com meu parceiro de treino, Renatinho, anunciamos: “95: vermelha, dez e presilha”. É como se compõe, com as anilhas (discos de metal com pesos definidos e identificados por cor), uma barra carregada com 95kg.
Mas um dia foi diferente. Um dia aquilo tudo era novo, como eram novas as histórias que Gilson, que dirige essa equipe de cerca de 30 atletas, me contava sobre a “economia informal” do tráfico, sobre a miséria, a falta de perspectiva e sobre a guerra entre pernambucanos e baianos que matou dezenas de pessoas durante anos. Esqueço até que foi daí que surgiu nossa idéia de criar uma ONG que desse maior estrutura ao esforço que ele já vinha fazendo há alguns anos para atrair para esse esporte duro de levantar pesos a molecada de Paradise, dando a elas um espaço de socialização mais seguro, um pouco de auto-estima e alguma perspectiva de vida.

Gilson nasceu em Paradise, em 1970. Filho mais novo de uma família de migrantes alagoanos, nasceu quando a família já vivia com mais conforto. Seu Loro, o pai, já havia se estabelecido como pequeno comerciante na região, onde até hoje é proprietário de um mercado. Gilson tinha tudo para seguir o caminho traçado para as famílias mais estáveis de Paradise e ser, como os irmãos, mais um pequeno empresário.
O pequeno Gilson cresceu em um mundo violento. Acompanhou, desde cedo, a guerra entre pernambucanos e baianos que dividiu a região e custou inúmeras vidas durante décadas. Mas acompanhou numa condição de neutralidade: primeiro, era filho do dono do mercado. Mal ou bem, todos precisam se abastecer e o mercado é uma espécie de território neutro. Segundo, não partilhava a origem com nenhuma das partes em conflito.
O destino de Gilson parecia ser esse olhar afastado, a perspectiva do observador. Seja por seu lugar na família, pelo contexto de adolescente vivendo um Brasil que se transformava e inventava uma nova democracia, Gilson não fez o que se esperava dele. Decidiu desde cedo que queria fazer Educação Física, para desgosto dos pais, e entrou aos 17 anos na universidade.
Desde o primeiro ano da faculdade, Gilson deu aula de Educação Física nas Escolas Públicas de Paradise. Em 1990, pouco antes de se formar, começou a trabalhar na Escola Estadual Professor Homero dos Santos Fortes, onde permaneceu até 1998. Durante esta convivência com crianças e jovens crescendo nas contradições da pobreza e na falta de perspectiva da exclusão, tão familiares e ao mesmo tempo afastadas de Gilson, ele foi encontrando um espaço e caminhos. Se deu conta de que tinha talento para treiná-los – para o que quer que fosse. Tinha liderança e segurança, e sob o seu comando, as crianças progrediam. Nessa hora, Gilson ainda não havia encontrado um objetivo claro onde investir seu talento. Em 1991, abriu, numa sociedade com um colega de faculdade, que durou um mês, uma pequena academia em Paradise, que manteve enquanto exercia sua função de professor e treinador no “Homero”. Em algum ponto, entre este momento e o fim de um noivado bem-comportado, aos 23 anos, ele perdeu o pé do pertencimento. O mundo tradicional, nordestino, com seus lugares bem definidos para profissões, relações de gênero, política, justiça e religião, ficou pequeno. O mundo dos colegas de classe média e feições européias, também.
Foi um momento de rupturas: com o fim do noivado e uma nova relação com uma mulher de fora, Gilson fechou a pequena academia, saiu de Paradise e se mudou para o Brooklin, onde abriu outra academia voltada para uma população inteiramente diferente. Por quase cinco anos, viveu essa vida alternativa que jamais sentiu inteiramente sua.
Durante essa transição marcada pelo fim da faculdade, fim do noivado, fim de uma vida de filho caçula, Gilson descobriu o Powerlifting. Powerlifting é um dos “esportes de força”, também conhecido como “Levantamento Básico”. É um esporte constituído por três levantamentos: o agachamento (onde o atleta saca, em pé, uma barra carregada com pesos nas costas, agacha e retorna a barra ao seu suporte), o supino (onde o atleta, deitado num banco, recebe uma barra carregada com pesos, com os braços estendidos, desce com a barra até o peito e a retorna à posição original) e o levantamento terra (onde o atleta ergue uma barra carregada com pesos do chão até se colocar na posição ereta e depois retorna a barra ao chão). É organizado por categorias de peso, sexo e idade. Como os demais esportes de força, o Powerlifting tem uma aura “hard-core”, de coisa tosca, com equipamentos desconfortáveis e com muito barulho de ferro batendo, de gente gritando e som alto de rock pesado. É, também, como os demais esportes de força no Brasil e muitos outros países, um esporte praticado por gente pobre, em academias equipadas com material simples, sólido, resistente e sem frescura.
Em 1993, num curso da FEPAM (Federação Paulista de Musculação), foi divulgado um evento apenas de supino – até hoje a modalidade mais praticada do Powerlifting. Gilson anotou o endereço e foi. Foi, foi desclassificado por não entender as regras mas insistiu. Foi em outro evento logo depois e novamente foi desclassificado. Mas quando um esporte está no sangue, está no sangue: Gilson insistiu e em 1994 começou a ter bons resultados: venceu o "Paulista de estreantes" em São Caetano do Sul, o "Paulista de 2ª categoria" no Guarujá, o "Paulista de 1ª categoria" no Palmeiras, a "Copa SP" em Mogi das Cruzes e foi convocado para o "Brasilerio de Básico" em setembro, todos de Powerlifting (não mais apenas de supino). Começou a levar seus próprios atletas para campeonatos de supino – daí nasceu o nome da nova academia do Brooklin, “Supino 200”. Animado, fez curso de árbitro, de treinamento de força e de tudo que aparecesse – os certificados, hoje meio amarelados, decoram a sala de alongamentos da GCA até hoje.
Em 1995, Gilson mudou de categoria e passou a enfrentar adversários mais fortes. Os bons resultados foram substituídos por posições mais baixas, segundos e terceiros lugares. Num campeonato paulista, sofreu uma derrota feia para Demerval Smith e acabou se lesionando por uma combinação de falta de técnica, raiva e um acesso de frustração que fez com que ele jogasse a barra no chão.
A falta de preparo – técnico, psicológico e de planejamento – como atleta que produziram maus resultados, as dificuldades administrativas e financeiras da nova academia de bairro caro e a desorganização política do esporte na época tiraram o entusiasmo de Gilson para o Powerlifting. Continuou levando alguns atletas para eventos de supino, mas em menor número e não mais disputando as competições de maior porte.
Chegava ao fim o tempo de amadurecimento de um projeto: Gilson nunca abandonou Paradise, e, na qualidade de professor e treinador de jovens no “Homero”, foi encontrando as respostas. Eram adolescentes que tinham diante de si a bandidagem e drogas, de um lado, a desagregação familiar, de outro, o desemprego ou emprego informal exploratório, de outro e uma bola na mão. Suas meninas do handbol arremessavam-nas como balas de canhão numa guerra e venciam. E como vencedoras saíam das quadras, ainda que técnico e atletas sofressem os protestos de professores e times adversários. Gilson sabia canalizar essa energia reprimida e devolver algo perdido a esses jovens. Estilo duro, gritos de guerra e autoridade.
E se em vez da bola fosse uma barra carregada? Não é fácil ensinar, e muito menos treinar alguém para executar o que se chama de um movimento de “esforço máximo”. Nosso sistema nervoso central precisa ser estimulado, ao longo de um programa longo – meses e anos -, e “aprender” a recrutar as fibras musculares para esse esforço. Mais do que outros esportes, requer uma dose alta de concentração e uma confiança absoluta no técnico, pois é através dele que o atleta consegue acreditar em algo que não parece verdade: que ele irá, sim, agachar com 100 kg, 130 kg, 150 kg e vencer um campeonato internacional com 160 kg. Mas hoje ele só consegue com 80 kg, tem medo da barra carregada e os joelhos doem muito apertados com a faixa de tecido elástico forte que comprime as articulações.
Em 1998, terminou o período sabático de Gilson e ele retornou a Paradise, abriu a atual GCA no espaço que fica atrás do mercado do Seu Loro e demitiu-se do “Homero” para manter, com a escola, uma parceria e amizade que não tem fim. Pelas ruas de Paradise, Gilson continua sendo o “professor”. Mas na GCA, Gilson preparava-se para transformar um esporte desorganizado e cheio de improvisação no maior instrumento de construção pessoal, recuperação de auto-estima e integração corporal que a população de Paradise conheceu.
O talento para treinar jovens ele agora aplicava para fazê-los levantar pesos e a presença firme, olhar duro e gritos de guerra nas competições fizeram campeões atrás de campeões na nova era do Powerlifting brasileiro que Gilson ajudava a criar: em 1999, André Dória, antigo dirigente do esporte, chamou-o para uma reunião. O que se desenrolou nestes últimos oito anos foi uma completa re-estruturação do esporte, onde Gilson é a figura estratégica na maior federação e confederação do país (a Federação Paulista de Powerlifting e a Confederação Brasileira de Levantamentos Básicos), exercendo o cargo de diretor técnico. A GCA transformou-se na maior e mais premiada equipe do país, apelidada por amigos e admiradores como “a rataiada da GCA”.
“ Não vale: o Gilson pega os flanelinhas e bota pra agachar, leva tudo!”, diz um atleta. “Flanelinhas”, “ratinhos”, assim são os atletas da GCA: ao contrário dos monstros bem alimentados e pesadíssimos das categorias acima de 100 kg masculinas que fizeram a imagem do esporte no mundo, Gilson leva minúsculas meninas de 40 kg ou 50 kg, garotos de menos de 60 kg, capazes de quebrar todos os records nacionais e se equiparar aos mundiais.
Gilson devolveu, através da força muscular, um poder subtraído a esses jovens antes de nascer; através do domínio sobre o corpo e um peso externo, um controle que nunca tiveram sobre suas próprias vidas; através da vontade de vencer um campeonato, a capacidade nunca adquirida de sonhar e ter determinação; e através de vitórias, uma identidade.
Eu conheci Gilson em julho de 2006, quando essa jornada já estava avançada. Minha história com os pesos era outra. Sempre fui atleta, mas foi através do treinamento de força que me recuperei de uma desordem grave e, talvez por fascínio ou gratidão, passei a estudar e a me dedicar a divulgar esportes de força. Ao longo de dois anos, fui percebendo um preconceito generalizado contra quase tudo que diz respeito à força: primeiro, entre a comunidade científica e médica, que a estuda pouco e sub-valoriza seu papel na doença e na saúde. Isso custa vidas (vidas de diabéticos, de cardiopatas e portadores de desordens mentais, privados do benefício único que o treinamento de força lhes traria) e dinheiro aos cofres públicos gastos em curar doenças que poderiam ser prevenidas. Depois, na estética, que associa muscularidade à violência e debilidade intelectual. E finalmente nos esportes, que são praticados pela classe trabalhadora. Dia 18 de fevereiro de 2006, passei por uma situação bizarra no centro da cidade de São Paulo quando fui fotografar halteres antigos na Academia Roldan, que fica na esquina da Avenida Ipiranga com São João: fui assaltada por um grupo de uns 10 ou mais meninos de rua. O assalto não deu em nada: eu estava no carro, com a janela aberta, eles ameaçavam cortar meu pescoço mas não achei a carteira. Desistiram do dinheiro e pediram timidamente meu iogurte, para depois me mandarem “com Deus” para casa. Saí dali com essa idéia fixa de que de algum jeito tínhamos que substituir a cola e o crack por halteres, pois o que mais me chamou atenção foram os bracinhos finos, mais finos que meus punhos, entrando pela janela do carro. Escrevi um artigo, busquei contatos, algumas pessoas se interessaram em desenvolver algum trabalho mas não deu em nada. O que eu tinha na cabeça, naquele momento, era só treinamento e, como esporte, fisiculturismo, que eu conhecia bem. Até o final de 2005, nem sabia direito o que era Powerlifting. Descobri em fóruns internacionais, lendo sobre escolas e modelos de treinamento. Interessada, perguntei a um amigo atleta e fisioterapeuta se ele sabia se no Brasil “isso” era praticado. Ele me deu o e-mail do Gilson e em julho de 2006 eu fiz minha primeira visita à GCA. Nunca mais saí de lá. Me tornei atleta da equipe, treino lá e ganhei alguns títulos no esporte. A identificação foi imediata: ali, na minha frente, vi meu sonho implementado. E talvez décadas de um desejo frustrado por períodos de militância estéril em partidos oportunistas de esquerda, como é o “default” na minha geração e na anterior a ela. Aos poucos, Gilson e eu amadurecemos o que chamamos de “Programa Paraisópolis Power”, hoje sendo formalizado como ONG. Sonhamos alto, batemos na porta de indústrias em busca de patrocínio, nos frustramos juntos e hoje acho que somos mais realistas.
O que eu via na GCA não eram os meninos de braços fininhos e cabeça de cola recuperados: era um passo anterior. Gilson havia oferecido uma alternativa antes que a única fosse a delinqüência. A vida dos atletas dele, no entanto, são o retrato da violência e da dificuldade. O geral, a realidade social, aprendi rápido: Paraisópolis é nicho paradigmático de todas as formas de exclusão. Mas cada vida a expressa de uma nova forma: a miséria é criativa. Por meses, fui recebendo informações de forma homeopática.
Ninguém fala disso todos os dias – não dá: famílias não re-lembram estupros, acidentes e horrores na mesa do café-da-manhã. É preciso de um mínimo de senso de normalidade para tocar a vida. E eu faço parte da família – não sou a “socióloga residente” em permanente função.
No entanto, quando pedi a Geisia, a Dani e à Dona Teresinha depoimentos para a construção da minha estória, as comportas do inferno se abriram. Há momentos para estas revelações em família e elas sempre têm um ar iniciático. Fui sentada ao lado de cada uma delas para escutar, solenemente, uma única vez, as coisas que não devem ser repetidas, mas sim lembradas em silêncio, para sempre.
Começo pela Dani, Daniela Gaudêncio, campeã paulista, brasileira e sul-americana de powerlifting em 2006, campeã e ganhadora do título de melhor atleta do campeonato brasileiro de Levantamento Terra de 2006, entre muitos outros títulos, uma das primeiras pessoas que vi na GCA. É uma das mulheres mais fortes que conheci: nunca passando dos 41kg, Dani é dona de vários dos records de levantamento da categoria dela. Jamais imaginaria ouvir dessa garota risonha, brincalhona e de voz fininha que a vida, para ela, havia começado em 2005 com sua entrada na GCA. “Amigos? Que amigos, Marília? Meus amigos são vocês, minha vida é o powerlifting”. Dani nasceu em Pernambuco, há 21 anos. Veio para São Paulo com um ano. Tem uma irmã e três irmãos de idade próxima. Desde que a família migrou para São Paulo, moram em Paradise. Dani nunca havia saído da favela até entrar na faculdade, o ano passado. Está no segundo ano de Educação Física no Mackenzie, onde, por conta de sua boa colocação no vestibular, tem bolsa integral.
Desde que se lembra por gente, a vida foi difícil. A família de cinco filhos nunca teve boas condições financeiras e o pai se meteu em encrencas desde sempre. Há, no entanto, um grande marcador de tempo na vida de Dani: a prisão do pai, quando ela tinha 10 anos. Ficou preso por 10 anos e saiu há pouco tempo.
As cinco crianças estudaram na escola pública de Paradise, onde a promoção é automática e o estímulo ao aprendizado é raro. Enquanto Dani completou os estudos e foi capaz de ser aprovada em uma universidade de bom nível, um dos irmãos termina o segundo grau sem muito mais do que a capacidade de escrever o próprio nome. Dani descreve sua infância e adolescência como uma espécie de corrida de obstáculos onde no fim, restou só ela. Suas contemporâneas foram engravidando antes dos 18 e sumindo pelo mundo. Os meninos, boa parte morreu, assassinada em confusões da “bandidagem”. Segundo Dani, aos 13 ou 14 anos os jovens desistem de estudar. Por um lado, a indiferença dos professores e a má qualidade do ensino. Por outro, a falta de perspectiva de ascensão social através da educação. O desemprego e a ocupação informal entre pares e familiares são a regra; currículos onde conste o endereço de Paradise são quase certeza de rejeição. Assim, sem recompensa pela educação ao alcance de suas vistas, sem valor na socialização e sem prazer no conteúdo curricular, as crianças não são capazes de aderir ao programa de ensino.
Mesmo antes da prisão do pai, as condições financeiras eram precárias. Depois dela, ficaram catastróficas, condenando a família por alguns anos a dependência de caridade e as crianças a buscarem trabalho. No começo, as crianças saíam às ruas para pedir comida e assim garantir o básico que a família consumia. Dani trabalhou desde faxina até ser vendedora e entregadora de folhetos nos faróis.
Alimentação, em Paradise, é a “pirâmide alimentar da pobreza”: na base, os básicos arroz e feijão; um pouco acima, itens como café, açúcar e óleo; mais acima, a “mistura”, que é qualquer fonte de proteína animal que se possa acrescentar ao arroz e ao feijão; acima ainda, e portanto mais raros nos pratos, estão os legumes, verduras e frutas. Para Dani, durante a maior parte de sua vida, a refeição consistia apenas de arroz, feijão e ovo. Carne foi algo introduzido há pouco tempo.
Existe uma certa perversidade na solidariedade entre vizinhos e familiares de Paradise. Ninguém passa fome de fato porque existe uma rede mínima de suporte. No entanto, os mais vulneráveis sofrem abuso de quem está em melhores condições. Sabendo da situação da família de Dani, vizinhas ofereciam 5 reais por uma faxina completa na casa. Sem alternativas, a menina aceitava.
O pai foi e continua sendo uma figura complicada e desagregadora. A linguagem da violência foi sua base de comunicação. Segundo Dani, todos na família falam alto demais e precisaram de ajuda para se ajustar aos padrões de “decibelagem” do mundo “aqui fora”, porque não sabiam se expressar sem ser aos gritos. A violência física também foi corriqueira durante todo o tempo de convivência do pai com os filhos. Uma vez, o pai perdeu o controle diante de algo trivial – a menina teria deixado de dar a descarga depois de ir ao banheiro. A resposta foi a agressão, que provocou uma perda de 90% de visão no olho esquerdo. O pior, para Dani, é que nem culpa ela tinha, já que toda a confusão foi gerada pelo coco de um gato...
Por outro lado, o pai sempre incentivou os filhos ao esporte. Desde pequena, Dani participou de atividades dentro e fora da escola e seu pai chegou a pagar aulas de capoeira para ela. Hoje, sempre premiada, Dani leva os troféus para o pai ver depois de cada competição de powerlifting. Dos filhos todos, é a única com alguma proximidade com ele.
Dani tem uma irmã que seguiu um caminho semelhante ao dela, estudando e entrando na universidade, onde cursa direito. Os irmãos, no entanto, seguiram o modelo dominante e deixaram os estudos. Dois já se meteram em encrencas e foram presos. Os dois primeiros namorados da irmã foram assassinados na “bandidagem”. Tudo isso fez com que fosse urgente para Dani sair do ambiente doméstico. A alternativa para isso foi o casamento, aos 17 anos, com o primeiro namorado.
Até então, Dani cresceu como um menino. Jamais usava roupas femininas ou tinha cuidados estéticos com cabelos, unhas e pele. Ricardo, o namorado, foi a primeira pessoa a vê-la como mulher. Incentivava sua vaidade feminina, dava-lhe roupas e pagava cabeleireiro e manicure. O pedido de casamento foi transmitido ao pai encarcerado e finalmente Dani ganhou a liberdade do ambiente estressante da família. O casamento terminou o ano passado. Dani pensou um pouco e disse: “o motivo da separação foi a pobreza...”. Segundo ela, viver em um único cômodo com alguém corrói qualquer relação. Ela pensa que se vivessem com mais conforto, numa casa maior, não estariam separados. Não brigaram – simplesmente a “taxa de infelicidade” chegou num limite que Dani considerou excessiva. Para ela, a vida só é feliz no powerlifting, por enquanto, mas tem esperanças que dele a felicidade se expanda. Ela se vê, formada, trabalhando em Paradise com atletas como ela mesma, que vivem dificuldades na vida fora do tablado e das barras, ajudando-os a superar obstáculos através da psicologia esportiva.
Hoje, Dani consegue se ver como vencedora. Mas o caminho para esta imagem positiva passou e passa o tempo todo pelo powerlifting: foram as vitórias no esporte que construíram essa Dani-2007, que sabe que é forte por dentro e por fora e que tem orgulho – e não vergonha, como antes – de ser moradora de Paradise.
Seis anos mais jovem que Dani, Geisia dos Santos, campeã paulista, brasileira e vice-sul-americana da categoria pré-juvenil, tem uma percepção mais difusa dos perigos, armadilhas e alternativas em Paradise. Nascida em Alagoas, veio com a família com apenas um ano. Tem uma irmã mais velha. Geisia é uma das exceções entre a molecada com quem convivo: a única que nunca perdeu um ano letivo. Não estuda em Paradise, e sim no bairro vizinho do Itaim, por determinação do pai. Lá a escola é bem melhor, os professores não faltam e ela é uma aluna aplicada. Gosta de matemática e de física e pretende fazer Educação Física na faculdade. O acesso à rua para brincar com amigos durante a infância foi e é até hoje restrito. Alguém sempre vigiava as crianças e Geisia tem hora para chegar em casa. Ela entende os cuidados e até repressão dos pais. Contou que assistiu uma execução de dois rapazes. Num dia em que a rua estava cheia de gente, uma das vítimas estava na rodinha dela. Afastou-se um pouco e foi para outra rodinha. O assassino se aproximou, atirou nos dois e saiu caminhando no meio dos gritos e correria. Seu pai saiu de casa, ouvindo o barulho dos tiros, e gritou para que ela entrasse. Ela não sabe qual foi “a treta” mas desconfia de falta de pagamento pelo fornecimento de drogas.
Drogas e tráfico são assuntos complicados. Para ela, é um mundo cercado de placas de “perigo”. Acudiu uma amiga que usou o que ela imagina ter sido apenas maconha, mas que passou muito mal. Observa as meninas que se envolvem com traficantes vivendo num clima de terror, já que os namorados são presos e paira uma ameaça sobre a fidelidade delas “aqui fora”. Vida de mulher de traficante é difícil e opressiva, na percepção dela.
Sobre sua condição feminina, Geisia se mostra um pouco perplexa. Aos 14 anos, com cerca de 1,76m, pesando bem distribuídos 72 a 73kg, Geisia é facilmente tomada por uma mulher de seus 20 anos. Em Paradise, as mulheres não têm muito tempo para hesitações e ambivalências. Não vivem a suave e longa gangorra entre infância e idade adulta das meninas de classe-média. As meninas se tornam mulheres da noite para o dia. E acordam num mundo muito mais difícil e hostil. Aprendem umas com as outras as estratégias para evitar o assédio masculino, evitam o confronto, mas sabem bater. Geisia observa suas contemporâneas, muitas das quais já engravidaram. Com a gravidez, é decretado o fim da infância e da imaturidade: acabam-se os estudos e começa a vida dura de mãe pobre. Em geral, se o pai assume a paternidade, o casal vai morar na casa de um dos avós. Conflitos inevitáveis se desenvolvem e muitas vezes a separação. Avós, tias e amigas se revezam nos cuidados ao bebê. Geisia já tomou conta de bebês de primas e amigas. Tem medo de um destino parecido comprometer seu projeto de estudar e também de satisfazer o sonho do pai de dar à filha uma perspectiva diferente da sua, de arrimo de família sem primário concluído e motorista de lotação.
A escola de Geisia criou um programa de educação sexual com distribuição gratuita de camisinhas. No entanto, as meninas não pegaram sua quota, com medo de vistorias às bolsas em casa.
Como boa parte da população de Paradise, Geisia é negra. Aprendeu com a mãe a valorizar os padrões estéticos da raça e a reagir à discriminação. Por enquanto, sem muitas palavras, mas com gestos decididos: encheu de hematomas um colega de escola que fez comentários racistas diante dela.
Paradise é um mundo pobre e nordestino: 80% da população tem origem nos estados do Nordeste. Essa combinação pode explicar as relações de gênero, que combinam a opressão da pobreza com muito de tradicional, tanto no machismo de homens e mulheres, como na cobrança a um amadurecimento precoce das meninas.
Dona Teresinha, penta-campeã brasileira (2000-2005), campeã sul-americana em 2003, 2004 e 2006 e vice-campeã mundial em 2002 (entre dezenas de outros títulos), 53 anos, veio de Pernambuco há 25 anos diretamente para Paradise, onde já vivia uma irmã. Casada, com 6 filhos, a família de pequenos sitiantes foi expulsa pela seca. Os números 25 (anos) e 6 (filhos) podem variar, já que certeza mesmo só tenho que ela nasceu em 1953. O resto é um pouco aproximado. Casou-se com 14 anos e só parou de ter filhos quando chegou ao oitavo. Diz ela que aos 14 anos era muito boba, não sabia de nada. Mas aos 18 ou 20 era uma mulher adulta, mãe de família numerosa, administrando a migração de todos para uma terra desconhecida em busca de um futuro qualquer, já que onde estava só lhe restava a fome. Em Paradise, alojaram-se com a irmã por pouco tempo e logo se mudaram para um barraco, onde até hoje mora a família de D. Teresinha, agora numa casa de bloco. Desse começo difícil num barraco de tábuas, ela lembra das noites sozinha encolhida em cima da cama chorando com medo das baratas paulistas. O marido trabalhava no período noturno, na Monark, e ela ficava em casa com os seis filhos e mais um na barriga, em estado de pânico. Nunca tinha visto baratas tão grandes e voadoras.
Foram 15 anos de trabalho duro na Monark para Seu José Waldir, que hoje ainda trabalha no Cemitério Getsemani. Todo o dinheiro do mês ficava no mercado para pagar as contas de suprimentos. Até que, depois de nascido o último filho, D. Teresinha também foi trabalhar. Tendo estudado apenas até a 4ª série, restou o trabalho mais duro, da faxina. Trabalhou no Portal do Morumbi, onde limpava o salão de ginástica, e depois no Colégio Porto Seguro. Como tantos em Paradise, não conseguiu mais emprego, que, com a idade, foi ficando mais e mais difícil. Há alguns anos parou de trabalhar em empregos externos e mantém um “botequinho”,onde vende balas, tubaina e pinga. O que mais sai é pinga, que, segundo ela, é um grande problema no bairro. As três mulheres – Dani, Geisia e D. Teresinha - foram unânimes em afirmar que o alcoolismo é o principal problema familiar e origem das separações em Paradise. D. Teresinha impressiona-se vendo os bêbados pela rua, com seus pés inchadíssimos.
Há 12 anos ela procurou Gilson por causa de dores nas costas e imediatamente começou a competir no powerlifting. O marido tentou afastá-la da academia, como tantos outros maridos machistas em Paradise. Não conseguindo, passou a reclamar dos gastos de D. Teresinha com o esporte, em equipamentos e viagens. Ela não dá bola.
Com marido, três filhos em casa, três netos sob seus cuidados e mais o botequinho, D. Teresinha segue em frente. Tudo requer foco e concentração, e nisso ela é muito competente. Treinar duro, competir sempre para vencer (ela nunca foi desclassificada num campeonato) e mostrar que mesmo só com o arroz-e-feijão-nosso-de-cada-dia, as mulheres de Paradise vão, chegam e levam os troféus. “Tem aquelas fortona que toma um monte de coisa, nós só tem a força do braço e ainda leva o primeiro lugar (sic.)”.
Eu tomo suplementos, um monte. Nos treinos e competições, tomo minhas bolinhas e meus pós diluídos com água. Minhas irmãs de Paradise me olham desconfiadas. Ofereço, às vezes até irritantemente, e não sei como será quando chegar o suplemento que estamos lutando para conseguir de um patrocinador. Elas preferem tudo a seco, na raça, com a força do braço e das entranhas.
Estranhas mulheres, mais feitas de terra e de ferro que de carne-e-osso.

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