Silmara
estava mais branca do que de costume e franzia um pouco a testa.
Elisângela, sua prima, olhava preocupada
do lado. Sentada no banco de supino, com os braços apoiados
na barra, Silmara esperava instruções. Gilson olhou,
olhou, apertou o antebraço da menina e concluiu: “melhor
não treinar hoje. Vá para casa”. Sem dizer muita
coisa, Silmara se levantou e caminhou de cabeça baixa pela sala
cheia de aparelhos, pegou a bolsa e partiu, acompanhada pela prima.
Olhei para Gilson, que acompanhou as meninas com o olhar. “É...
não sei.... algumas delas não passam bem mesmo”.
Silmara, de 17 anos e Elisângela, de 22, são atletas da
GCA, uma academia localizada na Favela de Paraisópolis, em São
Paulo. Elas são duas das aproximadamente 15 mulheres, em sua maioria
jovens, que compõe a equipe de powerlifting que Gilson Clemente
dirige. São todas moradoras de Paradise City, como eu chamo o
lugar para onde vou todos os dias, exceto aos domingos, desde julho do
ano passado. Eu sou a única mulher “estrangeira” do
grupo – a única que não mora lá, que não é migrante
nordestina de primeira ou segunda geração, a única
que não administra desde que nasceu as contradições
de se viver em Paradise. No começo elas estranharam mas em pouco
tempo esqueceram minha condição de estrangeira. Nos vemos
todos os dias, treinamos juntas, comemos juntas, viajamos juntas, dormimos
juntas e fazemos as coisas comuns que todas as mulheres fazem: usar a
roupa uma da outra, falar de homem e encontrar absorvente para uma emergência.
De vez em quando esqueço de que não sou nativa de Paradise.
Esqueço da combinação de choque e encantamento das
minhas primeiras idas à GCA. Esqueço de como foi fazer
aquela curva na Giovanni Gronchi, que corta os bairros de mais alto poder
aquisitivo em São Paulo, e em três quarteirões desembocar
em Paradise, numa espécie de montanha-russa de IDH (Índice
de Desenvolvimento Humano). Os edifícios de um apartamento por
andar e preço exorbitante dão lugar a um mundo de tijolos
vermelhos e gente furiosamente construindo o tempo todo algo na laje
superior. Esqueço do que foi entrar na sala de treino da GCA e
me achar numa exposição de arte contemporânea, de
apreciar as anilhas coloridas, as barras olímpicas, a gaiola azul
de ferro onde se pendurava uma barra com dois pneus de caminhão
fixados em cada ponta, como num móbile de Calder, e o Ikebana
metálico de barras menores.
Hoje chego, e faço como todo mundo, em gestos automáticos.
Com meu parceiro de treino, Renatinho, anunciamos: “95: vermelha,
dez e presilha”. É como se compõe, com as anilhas
(discos de metal com pesos definidos e identificados por cor), uma barra
carregada com 95kg.
Mas um dia foi diferente. Um dia aquilo tudo era novo, como eram novas
as histórias que Gilson, que dirige essa equipe de cerca de 30
atletas, me contava sobre a “economia informal” do tráfico,
sobre a miséria, a falta de perspectiva e sobre a guerra entre
pernambucanos e baianos que matou dezenas de pessoas durante anos. Esqueço
até que foi daí que surgiu nossa idéia de criar
uma ONG que desse maior estrutura ao esforço que ele já vinha
fazendo há alguns anos para atrair para esse esporte duro de levantar
pesos a molecada de Paradise, dando a elas um espaço de socialização
mais seguro, um pouco de auto-estima e alguma perspectiva de vida.
Gilson
nasceu em Paradise, em 1970. Filho mais novo de uma família
de migrantes alagoanos, nasceu quando a família já vivia
com mais conforto. Seu Loro, o pai, já havia se estabelecido
como pequeno comerciante na região, onde até hoje é proprietário
de um mercado. Gilson tinha tudo para seguir o caminho traçado
para as famílias mais estáveis de Paradise e ser, como
os irmãos, mais um pequeno empresário.
O pequeno Gilson cresceu em um mundo violento. Acompanhou, desde cedo,
a guerra entre pernambucanos e baianos que dividiu a região
e custou inúmeras vidas durante décadas. Mas acompanhou
numa condição de neutralidade: primeiro, era filho do
dono do mercado. Mal ou bem, todos precisam se abastecer e o mercado é uma
espécie de território neutro. Segundo, não partilhava
a origem com nenhuma das partes em conflito.
O destino de Gilson parecia ser esse olhar afastado, a perspectiva
do observador. Seja por seu lugar na família, pelo contexto
de adolescente vivendo um Brasil que se transformava e inventava uma
nova democracia, Gilson não fez o que se esperava dele. Decidiu
desde cedo que queria fazer Educação Física, para
desgosto dos pais, e entrou aos 17 anos na universidade.
Desde o primeiro ano da faculdade, Gilson deu aula de Educação
Física nas Escolas Públicas de Paradise. Em 1990, pouco
antes de se formar, começou a trabalhar na Escola Estadual Professor
Homero dos Santos Fortes, onde permaneceu até 1998. Durante
esta convivência com crianças e jovens crescendo nas contradições
da pobreza e na falta de perspectiva da exclusão, tão
familiares e ao mesmo tempo afastadas de Gilson, ele foi encontrando
um espaço e caminhos. Se deu conta de que tinha talento para
treiná-los – para o que quer que fosse. Tinha liderança
e segurança, e sob o seu comando, as crianças progrediam.
Nessa hora, Gilson ainda não havia encontrado um objetivo claro
onde investir seu talento. Em 1991, abriu, numa sociedade com um colega
de faculdade, que durou um mês, uma pequena academia em Paradise,
que manteve enquanto exercia sua função de professor
e treinador no “Homero”. Em algum ponto, entre este momento
e o fim de um noivado bem-comportado, aos 23 anos, ele perdeu o pé do
pertencimento. O mundo tradicional, nordestino, com seus lugares bem
definidos para profissões, relações de gênero,
política, justiça e religião, ficou pequeno. O
mundo dos colegas de classe média e feições européias,
também.
Foi um momento de rupturas: com o fim do noivado e uma nova relação
com uma mulher de fora, Gilson fechou a pequena academia, saiu de Paradise
e se mudou para o Brooklin, onde abriu outra academia voltada para
uma população inteiramente diferente. Por quase cinco
anos, viveu essa vida alternativa que jamais sentiu inteiramente sua.
Durante essa transição marcada pelo fim da faculdade,
fim do noivado, fim de uma vida de filho caçula, Gilson descobriu
o Powerlifting. Powerlifting é um dos “esportes de força”,
também conhecido como “Levantamento Básico”. É um
esporte constituído por três levantamentos: o agachamento
(onde o atleta saca, em pé, uma barra carregada com pesos nas
costas, agacha e retorna a barra ao seu suporte), o supino (onde o
atleta, deitado num banco, recebe uma barra carregada com pesos, com
os braços estendidos, desce com a barra até o peito e
a retorna à posição original) e o levantamento
terra (onde o atleta ergue uma barra carregada com pesos do chão
até se colocar na posição ereta e depois retorna
a barra ao chão). É organizado por categorias de peso,
sexo e idade. Como os demais esportes de força, o Powerlifting
tem uma aura “hard-core”, de coisa tosca, com equipamentos
desconfortáveis e com muito barulho de ferro batendo, de gente
gritando e som alto de rock pesado. É, também, como os
demais esportes de força no Brasil e muitos outros países,
um esporte praticado por gente pobre, em academias equipadas com material
simples, sólido, resistente e sem frescura.
Em 1993, num curso da FEPAM (Federação Paulista de Musculação),
foi divulgado um evento apenas de supino – até hoje a
modalidade mais praticada do Powerlifting. Gilson anotou o endereço
e foi. Foi, foi desclassificado por não entender as regras mas
insistiu. Foi em outro evento logo depois e novamente foi desclassificado.
Mas quando um esporte está no sangue, está no sangue:
Gilson insistiu e em 1994 começou a ter bons resultados: venceu
o "Paulista de estreantes" em São Caetano do Sul,
o "Paulista de 2ª categoria" no Guarujá, o "Paulista
de 1ª categoria" no Palmeiras, a "Copa SP" em Mogi
das Cruzes e foi convocado para o "Brasilerio de Básico" em
setembro, todos de Powerlifting (não mais apenas de supino).
Começou a levar seus próprios atletas para campeonatos
de supino – daí nasceu o nome da nova academia do Brooklin, “Supino
200”. Animado, fez curso de árbitro, de treinamento de
força e de tudo que aparecesse – os certificados, hoje
meio amarelados, decoram a sala de alongamentos da GCA até hoje.
Em 1995, Gilson mudou de categoria e passou a enfrentar adversários
mais fortes. Os bons resultados foram substituídos por posições
mais baixas, segundos e terceiros lugares. Num campeonato paulista,
sofreu uma derrota feia para Demerval Smith e acabou se lesionando
por uma combinação de falta de técnica, raiva
e um acesso de frustração que fez com que ele jogasse
a barra no chão.
A falta de preparo – técnico, psicológico e de
planejamento – como atleta que produziram maus resultados, as
dificuldades administrativas e financeiras da nova academia de bairro
caro e a desorganização política do esporte na época
tiraram o entusiasmo de Gilson para o Powerlifting. Continuou levando
alguns atletas para eventos de supino, mas em menor número e
não mais disputando as competições de maior porte.
Chegava ao fim o tempo de amadurecimento de um projeto: Gilson nunca
abandonou Paradise, e, na qualidade de professor e treinador de jovens
no “Homero”, foi encontrando as respostas. Eram adolescentes
que tinham diante de si a bandidagem e drogas, de um lado, a desagregação
familiar, de outro, o desemprego ou emprego informal exploratório,
de outro e uma bola na mão. Suas meninas do handbol arremessavam-nas
como balas de canhão numa guerra e venciam. E como vencedoras
saíam das quadras, ainda que técnico e atletas sofressem
os protestos de professores e times adversários. Gilson sabia
canalizar essa energia reprimida e devolver algo perdido a esses jovens.
Estilo duro, gritos de guerra e autoridade.
E se em vez da bola fosse uma barra carregada? Não é fácil
ensinar, e muito menos treinar alguém para executar o que se
chama de um movimento de “esforço máximo”.
Nosso sistema nervoso central precisa ser estimulado, ao longo de um
programa longo – meses e anos -, e “aprender” a recrutar
as fibras musculares para esse esforço. Mais do que outros esportes,
requer uma dose alta de concentração e uma confiança
absoluta no técnico, pois é através dele que o
atleta consegue acreditar em algo que não parece verdade: que
ele irá, sim, agachar com 100 kg, 130 kg, 150 kg e vencer um
campeonato internacional com 160 kg. Mas hoje ele só consegue
com 80 kg, tem medo da barra carregada e os joelhos doem muito apertados
com a faixa de tecido elástico forte que comprime as articulações.
Em 1998, terminou o período sabático de Gilson e ele
retornou a Paradise, abriu a atual GCA no espaço que fica atrás
do mercado do Seu Loro e demitiu-se do “Homero” para manter,
com a escola, uma parceria e amizade que não tem fim. Pelas
ruas de Paradise, Gilson continua sendo o “professor”.
Mas na GCA, Gilson preparava-se para transformar um esporte desorganizado
e cheio de improvisação no maior instrumento de construção
pessoal, recuperação de auto-estima e integração
corporal que a população de Paradise conheceu.
O talento para treinar jovens ele agora aplicava para fazê-los
levantar pesos e a presença firme, olhar duro e gritos de guerra
nas competições fizeram campeões atrás
de campeões na nova era do Powerlifting brasileiro que Gilson
ajudava a criar: em 1999, André Dória, antigo dirigente
do esporte, chamou-o para uma reunião. O que se desenrolou nestes últimos
oito anos foi uma completa re-estruturação do esporte,
onde Gilson é a figura estratégica na maior federação
e confederação do país (a Federação
Paulista de Powerlifting e a Confederação Brasileira
de Levantamentos Básicos), exercendo o cargo de diretor técnico.
A GCA transformou-se na maior e mais premiada equipe do país,
apelidada por amigos e admiradores como “a rataiada da GCA”.
“
Não vale: o Gilson pega os flanelinhas e bota pra agachar, leva
tudo!”, diz um atleta. “Flanelinhas”, “ratinhos”,
assim são os atletas da GCA: ao contrário dos monstros
bem alimentados e pesadíssimos das categorias acima de 100 kg
masculinas que fizeram a imagem do esporte no mundo, Gilson leva minúsculas
meninas de 40 kg ou 50 kg, garotos de menos de 60 kg, capazes de quebrar
todos os records nacionais e se equiparar aos mundiais.
Gilson devolveu, através da força muscular, um poder
subtraído a esses jovens antes de nascer; através do
domínio sobre o corpo e um peso externo, um controle que nunca
tiveram sobre suas próprias vidas; através da vontade
de vencer um campeonato, a capacidade nunca adquirida de sonhar e ter
determinação; e através de vitórias, uma
identidade.
Eu conheci Gilson em julho de 2006, quando essa jornada já estava
avançada. Minha história com os pesos era outra. Sempre
fui atleta, mas foi através do treinamento de força que
me recuperei de uma desordem grave e, talvez por fascínio ou
gratidão, passei a estudar e a me dedicar a divulgar esportes
de força. Ao longo de dois anos, fui percebendo um preconceito
generalizado contra quase tudo que diz respeito à força:
primeiro, entre a comunidade científica e médica, que
a estuda pouco e sub-valoriza seu papel na doença e na saúde.
Isso custa vidas (vidas de diabéticos, de cardiopatas e portadores
de desordens mentais, privados do benefício único que
o treinamento de força lhes traria) e dinheiro aos cofres públicos
gastos em curar doenças que poderiam ser prevenidas. Depois,
na estética, que associa muscularidade à violência
e debilidade intelectual. E finalmente nos esportes, que são
praticados pela classe trabalhadora. Dia 18 de fevereiro de 2006, passei
por uma situação bizarra no centro da cidade de São
Paulo quando fui fotografar halteres antigos na Academia Roldan, que
fica na esquina da Avenida Ipiranga com São João: fui
assaltada por um grupo de uns 10 ou mais meninos de rua. O assalto
não deu em nada: eu estava no carro, com a janela aberta, eles
ameaçavam cortar meu pescoço mas não achei a carteira.
Desistiram do dinheiro e pediram timidamente meu iogurte, para depois
me mandarem “com Deus” para casa. Saí dali com essa
idéia fixa de que de algum jeito tínhamos que substituir
a cola e o crack por halteres, pois o que mais me chamou atenção
foram os bracinhos finos, mais finos que meus punhos, entrando pela
janela do carro. Escrevi um artigo, busquei contatos, algumas pessoas
se interessaram em desenvolver algum trabalho mas não deu em
nada. O que eu tinha na cabeça, naquele momento, era só treinamento
e, como esporte, fisiculturismo, que eu conhecia bem. Até o
final de 2005, nem sabia direito o que era Powerlifting. Descobri em
fóruns internacionais, lendo sobre escolas e modelos de treinamento.
Interessada, perguntei a um amigo atleta e fisioterapeuta se ele sabia
se no Brasil “isso” era praticado. Ele me deu o e-mail
do Gilson e em julho de 2006 eu fiz minha primeira visita à GCA.
Nunca mais saí de lá. Me tornei atleta da equipe, treino
lá e ganhei alguns títulos no esporte. A identificação
foi imediata: ali, na minha frente, vi meu sonho implementado. E talvez
décadas de um desejo frustrado por períodos de militância
estéril em partidos oportunistas de esquerda, como é o “default” na
minha geração e na anterior a ela. Aos poucos, Gilson
e eu amadurecemos o que chamamos de “Programa Paraisópolis
Power”, hoje sendo formalizado como ONG. Sonhamos alto, batemos
na porta de indústrias em busca de patrocínio, nos frustramos
juntos e hoje acho que somos mais realistas.
O que eu via na GCA não eram os meninos de braços fininhos
e cabeça de cola recuperados: era um passo anterior. Gilson
havia oferecido uma alternativa antes que a única fosse a delinqüência.
A vida dos atletas dele, no entanto, são o retrato da violência
e da dificuldade. O geral, a realidade social, aprendi rápido:
Paraisópolis é nicho paradigmático de todas as
formas de exclusão. Mas cada vida a expressa de uma nova forma:
a miséria é criativa. Por meses, fui recebendo informações
de forma homeopática.
Ninguém fala disso todos os dias – não dá:
famílias não re-lembram estupros, acidentes e horrores
na mesa do café-da-manhã. É preciso de um mínimo
de senso de normalidade para tocar a vida. E eu faço parte da
família – não sou a “socióloga residente” em
permanente função.
No entanto, quando pedi a Geisia, a Dani e à Dona Teresinha
depoimentos para a construção da minha estória,
as comportas do inferno se abriram. Há momentos para estas revelações
em família e elas sempre têm um ar iniciático.
Fui sentada ao lado de cada uma delas para escutar, solenemente, uma única
vez, as coisas que não devem ser repetidas, mas sim lembradas
em silêncio, para sempre.
Começo pela Dani, Daniela Gaudêncio, campeã paulista,
brasileira e sul-americana de powerlifting em 2006, campeã e
ganhadora do título de melhor atleta do campeonato brasileiro
de Levantamento Terra de 2006, entre muitos outros títulos,
uma das primeiras pessoas que vi na GCA. É uma das mulheres
mais fortes que conheci: nunca passando dos 41kg, Dani é dona
de vários dos records de levantamento da categoria dela. Jamais
imaginaria ouvir dessa garota risonha, brincalhona e de voz fininha
que a vida, para ela, havia começado em 2005 com sua entrada
na GCA. “Amigos? Que amigos, Marília? Meus amigos são
vocês, minha vida é o powerlifting”. Dani nasceu
em Pernambuco, há 21 anos. Veio para São Paulo com um
ano. Tem uma irmã e três irmãos de idade próxima.
Desde que a família migrou para São Paulo, moram em Paradise.
Dani nunca havia saído da favela até entrar na faculdade,
o ano passado. Está no segundo ano de Educação
Física no Mackenzie, onde, por conta de sua boa colocação
no vestibular, tem bolsa integral.
Desde que se lembra por gente, a vida foi difícil. A família
de cinco filhos nunca teve boas condições financeiras
e o pai se meteu em encrencas desde sempre. Há, no entanto,
um grande marcador de tempo na vida de Dani: a prisão do pai,
quando ela tinha 10 anos. Ficou preso por 10 anos e saiu há pouco
tempo.
As cinco crianças estudaram na escola pública de Paradise,
onde a promoção é automática e o estímulo
ao aprendizado é raro. Enquanto Dani completou os estudos e
foi capaz de ser aprovada em uma universidade de bom nível,
um dos irmãos termina o segundo grau sem muito mais do que a
capacidade de escrever o próprio nome. Dani descreve sua infância
e adolescência como uma espécie de corrida de obstáculos
onde no fim, restou só ela. Suas contemporâneas foram
engravidando antes dos 18 e sumindo pelo mundo. Os meninos, boa parte
morreu, assassinada em confusões da “bandidagem”.
Segundo Dani, aos 13 ou 14 anos os jovens desistem de estudar. Por
um lado, a indiferença dos professores e a má qualidade
do ensino. Por outro, a falta de perspectiva de ascensão social
através da educação. O desemprego e a ocupação
informal entre pares e familiares são a regra; currículos
onde conste o endereço de Paradise são quase certeza
de rejeição. Assim, sem recompensa pela educação
ao alcance de suas vistas, sem valor na socialização
e sem prazer no conteúdo curricular, as crianças não
são capazes de aderir ao programa de ensino.
Mesmo antes da prisão do pai, as condições financeiras
eram precárias. Depois dela, ficaram catastróficas, condenando
a família por alguns anos a dependência de caridade e
as crianças a buscarem trabalho. No começo, as crianças
saíam às ruas para pedir comida e assim garantir o básico
que a família consumia. Dani trabalhou desde faxina até ser
vendedora e entregadora de folhetos nos faróis.
Alimentação, em Paradise, é a “pirâmide
alimentar da pobreza”: na base, os básicos arroz e feijão;
um pouco acima, itens como café, açúcar e óleo;
mais acima, a “mistura”, que é qualquer fonte de
proteína animal que se possa acrescentar ao arroz e ao feijão;
acima ainda, e portanto mais raros nos pratos, estão os legumes,
verduras e frutas. Para Dani, durante a maior parte de sua vida, a
refeição consistia apenas de arroz, feijão e ovo.
Carne foi algo introduzido há pouco tempo.
Existe uma certa perversidade na solidariedade entre vizinhos e familiares
de Paradise. Ninguém passa fome de fato porque existe uma rede
mínima de suporte. No entanto, os mais vulneráveis sofrem
abuso de quem está em melhores condições. Sabendo
da situação da família de Dani, vizinhas ofereciam
5 reais por uma faxina completa na casa. Sem alternativas, a menina
aceitava.
O pai foi e continua sendo uma figura complicada e desagregadora. A
linguagem da violência foi sua base de comunicação.
Segundo Dani, todos na família falam alto demais e precisaram
de ajuda para se ajustar aos padrões de “decibelagem” do
mundo “aqui fora”, porque não sabiam se expressar
sem ser aos gritos. A violência física também foi
corriqueira durante todo o tempo de convivência do pai com os
filhos. Uma vez, o pai perdeu o controle diante de algo trivial – a
menina teria deixado de dar a descarga depois de ir ao banheiro. A
resposta foi a agressão, que provocou uma perda de 90% de visão
no olho esquerdo. O pior, para Dani, é que nem culpa ela tinha,
já que toda a confusão foi gerada pelo coco de um gato...
Por outro lado, o pai sempre incentivou os filhos ao esporte. Desde
pequena, Dani participou de atividades dentro e fora da escola e seu
pai chegou a pagar aulas de capoeira para ela. Hoje, sempre premiada,
Dani leva os troféus para o pai ver depois de cada competição
de powerlifting. Dos filhos todos, é a única com alguma
proximidade com ele.
Dani tem uma irmã que seguiu um caminho semelhante ao dela,
estudando e entrando na universidade, onde cursa direito. Os irmãos,
no entanto, seguiram o modelo dominante e deixaram os estudos. Dois
já se meteram em encrencas e foram presos. Os dois primeiros
namorados da irmã foram assassinados na “bandidagem”.
Tudo isso fez com que fosse urgente para Dani sair do ambiente doméstico.
A alternativa para isso foi o casamento, aos 17 anos, com o primeiro
namorado.
Até então, Dani cresceu como um menino. Jamais usava
roupas femininas ou tinha cuidados estéticos com cabelos, unhas
e pele. Ricardo, o namorado, foi a primeira pessoa a vê-la como
mulher. Incentivava sua vaidade feminina, dava-lhe roupas e pagava
cabeleireiro e manicure. O pedido de casamento foi transmitido ao pai
encarcerado e finalmente Dani ganhou a liberdade do ambiente estressante
da família. O casamento terminou o ano passado. Dani pensou
um pouco e disse: “o motivo da separação foi a
pobreza...”. Segundo ela, viver em um único cômodo
com alguém corrói qualquer relação. Ela
pensa que se vivessem com mais conforto, numa casa maior, não
estariam separados. Não brigaram – simplesmente a “taxa
de infelicidade” chegou num limite que Dani considerou excessiva.
Para ela, a vida só é feliz no powerlifting, por enquanto,
mas tem esperanças que dele a felicidade se expanda. Ela se
vê, formada, trabalhando em Paradise com atletas como ela mesma,
que vivem dificuldades na vida fora do tablado e das barras, ajudando-os
a superar obstáculos através da psicologia esportiva.
Hoje, Dani consegue se ver como vencedora. Mas o caminho para esta
imagem positiva passou e passa o tempo todo pelo powerlifting: foram
as vitórias no esporte que construíram essa Dani-2007,
que sabe que é forte por dentro e por fora e que tem orgulho – e
não vergonha, como antes – de ser moradora de Paradise.
Seis anos mais jovem que Dani, Geisia dos Santos, campeã paulista,
brasileira e vice-sul-americana da categoria pré-juvenil, tem
uma percepção mais difusa dos perigos, armadilhas e alternativas
em Paradise. Nascida em Alagoas, veio com a família com apenas
um ano. Tem uma irmã mais velha. Geisia é uma das exceções
entre a molecada com quem convivo: a única que nunca perdeu
um ano letivo. Não estuda em Paradise, e sim no bairro vizinho
do Itaim, por determinação do pai. Lá a escola é bem
melhor, os professores não faltam e ela é uma aluna aplicada.
Gosta de matemática e de física e pretende fazer Educação
Física na faculdade. O acesso à rua para brincar com
amigos durante a infância foi e é até hoje restrito.
Alguém sempre vigiava as crianças e Geisia tem hora para
chegar em casa. Ela entende os cuidados e até repressão
dos pais. Contou que assistiu uma execução de dois rapazes.
Num dia em que a rua estava cheia de gente, uma das vítimas
estava na rodinha dela. Afastou-se um pouco e foi para outra rodinha.
O assassino se aproximou, atirou nos dois e saiu caminhando no meio
dos gritos e correria. Seu pai saiu de casa, ouvindo o barulho dos
tiros, e gritou para que ela entrasse. Ela não sabe qual foi “a
treta” mas desconfia de falta de pagamento pelo fornecimento
de drogas.
Drogas e tráfico são assuntos complicados. Para ela, é um
mundo cercado de placas de “perigo”. Acudiu uma amiga que
usou o que ela imagina ter sido apenas maconha, mas que passou muito
mal. Observa as meninas que se envolvem com traficantes vivendo num
clima de terror, já que os namorados são presos e paira
uma ameaça sobre a fidelidade delas “aqui fora”.
Vida de mulher de traficante é difícil e opressiva, na
percepção dela.
Sobre sua condição feminina, Geisia se mostra um pouco
perplexa. Aos 14 anos, com cerca de 1,76m, pesando bem distribuídos
72 a 73kg, Geisia é facilmente tomada por uma mulher de seus
20 anos. Em Paradise, as mulheres não têm muito tempo
para hesitações e ambivalências. Não vivem
a suave e longa gangorra entre infância e idade adulta das meninas
de classe-média. As meninas se tornam mulheres da noite para
o dia. E acordam num mundo muito mais difícil e hostil. Aprendem
umas com as outras as estratégias para evitar o assédio
masculino, evitam o confronto, mas sabem bater. Geisia observa suas
contemporâneas, muitas das quais já engravidaram. Com
a gravidez, é decretado o fim da infância e da imaturidade:
acabam-se os estudos e começa a vida dura de mãe pobre.
Em geral, se o pai assume a paternidade, o casal vai morar na casa
de um dos avós. Conflitos inevitáveis se desenvolvem
e muitas vezes a separação. Avós, tias e amigas
se revezam nos cuidados ao bebê. Geisia já tomou conta
de bebês de primas e amigas. Tem medo de um destino parecido
comprometer seu projeto de estudar e também de satisfazer o
sonho do pai de dar à filha uma perspectiva diferente da sua,
de arrimo de família sem primário concluído e
motorista de lotação.
A escola de Geisia criou um programa de educação sexual
com distribuição gratuita de camisinhas. No entanto,
as meninas não pegaram sua quota, com medo de vistorias às
bolsas em casa.
Como boa parte da população de Paradise, Geisia é negra.
Aprendeu com a mãe a valorizar os padrões estéticos
da raça e a reagir à discriminação. Por
enquanto, sem muitas palavras, mas com gestos decididos: encheu de
hematomas um colega de escola que fez comentários racistas diante
dela.
Paradise é um mundo pobre e nordestino: 80% da população
tem origem nos estados do Nordeste. Essa combinação pode
explicar as relações de gênero, que combinam a
opressão da pobreza com muito de tradicional, tanto no machismo
de homens e mulheres, como na cobrança a um amadurecimento precoce
das meninas.
Dona Teresinha, penta-campeã brasileira (2000-2005), campeã sul-americana
em 2003, 2004 e 2006 e vice-campeã mundial em 2002 (entre dezenas
de outros títulos), 53 anos, veio de Pernambuco há 25
anos diretamente para Paradise, onde já vivia uma irmã.
Casada, com 6 filhos, a família de pequenos sitiantes foi expulsa
pela seca. Os números 25 (anos) e 6 (filhos) podem variar, já que
certeza mesmo só tenho que ela nasceu em 1953. O resto é um
pouco aproximado. Casou-se com 14 anos e só parou de ter filhos
quando chegou ao oitavo. Diz ela que aos 14 anos era muito boba, não
sabia de nada. Mas aos 18 ou 20 era uma mulher adulta, mãe de
família numerosa, administrando a migração de
todos para uma terra desconhecida em busca de um futuro qualquer, já que
onde estava só lhe restava a fome. Em Paradise, alojaram-se
com a irmã por pouco tempo e logo se mudaram para um barraco,
onde até hoje mora a família de D. Teresinha, agora numa
casa de bloco. Desse começo difícil num barraco de tábuas,
ela lembra das noites sozinha encolhida em cima da cama chorando com
medo das baratas paulistas. O marido trabalhava no período noturno,
na Monark, e ela ficava em casa com os seis filhos e mais um na barriga,
em estado de pânico. Nunca tinha visto baratas tão grandes
e voadoras.
Foram 15 anos de trabalho duro na Monark para Seu José Waldir,
que hoje ainda trabalha no Cemitério Getsemani. Todo o dinheiro
do mês ficava no mercado para pagar as contas de suprimentos.
Até que, depois de nascido o último filho, D. Teresinha
também foi trabalhar. Tendo estudado apenas até a 4ª série,
restou o trabalho mais duro, da faxina. Trabalhou no Portal do Morumbi,
onde limpava o salão de ginástica, e depois no Colégio
Porto Seguro. Como tantos em Paradise, não conseguiu mais emprego,
que, com a idade, foi ficando mais e mais difícil. Há alguns
anos parou de trabalhar em empregos externos e mantém um “botequinho”,onde
vende balas, tubaina e pinga. O que mais sai é pinga, que, segundo
ela, é um grande problema no bairro. As três mulheres – Dani,
Geisia e D. Teresinha - foram unânimes em afirmar que o alcoolismo é o
principal problema familiar e origem das separações em
Paradise. D. Teresinha impressiona-se vendo os bêbados pela rua,
com seus pés inchadíssimos.
Há 12 anos ela procurou Gilson por causa de dores nas costas
e imediatamente começou a competir no powerlifting. O marido
tentou afastá-la da academia, como tantos outros maridos machistas
em Paradise. Não conseguindo, passou a reclamar dos gastos de
D. Teresinha com o esporte, em equipamentos e viagens. Ela não
dá bola.
Com marido, três filhos em casa, três netos sob seus cuidados
e mais o botequinho, D. Teresinha segue em frente. Tudo requer foco
e concentração, e nisso ela é muito competente.
Treinar duro, competir sempre para vencer (ela nunca foi desclassificada
num campeonato) e mostrar que mesmo só com o arroz-e-feijão-nosso-de-cada-dia,
as mulheres de Paradise vão, chegam e levam os troféus. “Tem
aquelas fortona que toma um monte de coisa, nós só tem
a força do braço e ainda leva o primeiro lugar (sic.)”.
Eu tomo suplementos, um monte. Nos treinos e competições,
tomo minhas bolinhas e meus pós diluídos com água.
Minhas irmãs de Paradise me olham desconfiadas. Ofereço, às
vezes até irritantemente, e não sei como será quando
chegar o suplemento que estamos lutando para conseguir de um patrocinador.
Elas preferem tudo a seco, na raça, com a força do braço
e das entranhas.
Estranhas mulheres, mais feitas de terra e de ferro que de carne-e-osso.
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