OUTROS TEXTOS

Pancadaria, força e histórias de ninar.

 

Há algum tempo venho pensando em escrever algo sobre esportes de luta e a relação entre meu gosto por esses esportes e algumas experiências da minha vida que considero envolvidas com esse gosto. Sei bem que um texto dissertativo propriamente dito não deve ser escrito em primeira pessoa, mas pretendo falar mais baseado na minha experiência, sem pretensões de efetivamente teorizar sobre o tema, pois não sou da área da psicologia e, sequer, tenho intimidade com a literatura clássica dessa área.
Tentando analisar, com a maior profundidade possível, o que me leva a querer subir num ringue pra fazer uma luva mais intensa a cada treino, respeitando meus limites, mas tentando expandi-los, eu me remeto, na referência mais remota, às histórias de ninar do meu avô. É uma afirmação que certamente causará estranhamento no leitor, assim como o título maluco desse texto, mas passo a explicar.
Acredito que, ainda muito novo, no colo do meu avô, o primeiro valor por mim assimilado foi o valor da bravura. Isso se deu através de umas historinhas humorísticas onde meu avô convertia a si e ao seu cunhado, em dois personagens, ambos caricatos, sendo meu avô, o bravo e o Assis, o frouxo. Eu ria demais dessas histórias, mas a narrativa dele levando leões a nocaute com socos enquanto o Assis corria fugido da forma mais ridícula e vexatória, certamente, além de me fazerem rir, me inspiravam algo mais. Ali, imagino, começava o reconhecimento da bravura como um valor. Essas assimilações precoces sempre se fazem as mais profundas.
Durante toda a minha vida, em matéria de ficção, principalmente no cinema, me empolgou a romantização da bravura. Disso veio o fascínio por um seriado com história de cangaceiros que passou na Rede Globo quando era ainda muito novo, até demais pra ver tantas balas e sangue, mas não havia quem pudesse me afastar daquilo. “Sansão e Dalila”, o filme, eu também sempre via quando repetiam incansavelmente na televisão. E, assim, esse gosto pela temática me acompanha até hoje. Gosto de filmes épicos tratando da coragem e da força do centurião romano, como “Gladiador”, com Russel Crowe, por exemplo. Não há como se estender tanto citando e comentando. Acredito que a linha já tenha sido captada.
Eu havia treinado, ainda criança, karatê shotokan numa academia muito tradicional da cidade. Abandonei porque me senti um tanto incompatível com o estilo do mestre que treinava os alunos graduados, pois ele utilizava de certo militarismo no treinamento. Aquela coisa de falar frequentemente em voz alta com a molecada. Acho que meu espírito anárquico já começava a se esboçar ali e não conseguia ver como legítima a autoridade que o treinador pensava ter sobre mim. Fui graduado com medalhas, reconhecido como aluno promissor na academia, mas essa incompatibilidade com o jeito autoritário de ensinar foi maior que tudo isso. Ainda fiz uma tentativa de continuar treinando com o faixa marrom que treinava os não graduados, mesmo sendo graduado, mas ficava uma situação muito esquisita. Com isso, abandonei o karatê.
Depois disso ainda fiz outras tentativas com o taekwon-do, onde esbarrei algumas vezes com problemas de horários, ou não gostei das instalações da academia, ou até mesmo me deparava com treinador autoritário semelhante ao do karatê.
Depois dessa experiência, embora tenha sempre mantido meu flerte com as artes marciais, me empolguei mais em alguns períodos com a musculação. Lia bastante sobre o tema, passei a criar meus próprios treinos, muitas vezes focando muito mais desenvolvimento de força do que mesmo hipertrofia, definição, e resultados estéticos em geral. Meu objetivo era aumentar cargas, mesmo, mas com responsabilidade e segurança, é claro. Acho que aí está presente também esse entusiasmo com a bravura. A auto-superação, o vencer a dor, que sempre me empolgaram.
O intrigante do treinamento de força é a forma como se progride nele. Você começa disposto a sofrer um tanto, a submeter-se a determinado patamar de dor em nome da consecução de certo objetivo, de alcançar uma meta traçada inicialmente. Depois de atingir essa meta, você começa a mirar um novo objetivo mais adiante. Então, é necessário se preparar para enfrentar a dor em um novo patamar, mais elevado. E assim se atingem níveis de força cada vez maiores, submetendo-se a dores cada vez maiores. Não tenha dúvida. Se você sente sempre a mesma dor, você não vai a lugar nenhum nesse esporte. Por isso, aqui é lugar para bravos. Como disse o general Winston Churchill: “If you’re going through hell, keep going!”
Depois desse longo intervalo, fui malhar em uma academia muito mais focada em lutas do que em musculação, embora com um bom maquinário para musculação também. Praticam-se por lá várias artes marciais, têm-se atletas de jiu jitsu, de boxe, de MMA, mas o forte da academia mesmo é o Thai Boxe, que sempre foi uma arte que me despertou muito interesse pela explosão e a contundência dos golpes. Respeito grapplers e strikers de todas as artes marciais e seus praticantes, mas sempre me fascinou mesmo a arte tailandesa com suas caneladas e joelhadas devastadoras, aliadas a um jogo de boxe que também pode ser muito refinado. Uma combinação destruidora!
Depois de um tempo apenas malhando por lá e flertando com o tatame e com o ringue, comecei a praticar o Thai Boxe e de lá não saio mais. Simplesmente amo o esporte. E continuo pegando pesado também com os halteres. São ambientes onde me sinto em contato com aquela semente de bravura plantada em mim ainda muito garoto. A experiência no ringue também é extrema. Ali enfrenta-se medo, enfrenta-se dor e cansaço e experimenta-se também a mensuração da própria bravura. Saber até onde você está disposto a levar essas experiências e aprender a lidar com seus próprios limites. Certamente, daquele ringue, tiram-se lições para diversas outras áreas da vida, assunto que pretendo abordar em outro texto.
Pratico o Thai Boxe sem intenção de competir, não sei se um dia me sentirei a vontade para tanto. É provável que não. Vou chegando aos 30 anos e meu retorno ao mundo das artes marciais foi meio tardio para agora pensar em ir tão longe. Se um dia me sentir bem pra fazer uma luta amadora e se, além disso, puder vencê-la, dedicarei essa vitória ao meu avô, certamente. O homem era um bravo e soube passar muito bem o recado.

Ticiano Sampaio


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